terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Carta

"A grama do parque dava a impressão de um tapete vermelho enfeitado com folhas de outono. Ao longe ela parecia uma miragem. Nua. Quando veio em minha direção, não estremeci. O corpo intacto, nenhuma marca. O rosto coberto de sangue. O olhar vazio era como uma hipnose que a protegia da realidade. Senti suas mãos trêmulas pousando sobre as minhas. Não sabia quem era, seu rosto estava desfigurado. Mas aquele olhar, ah minha querida filha, aquele olhar me lembrava alguém. Foi então que a reconheci - minha doce e amada esposa – sua mãe.        

Isso foi há 4 meses. Ainda não sabemos o que aconteceu. Mas tenho certeza, quando você nascer já teremos a resposta. Depois de dois meses no hospital estamos finalmente de volta ao lar. Sem rosto e também sem memória, a tristeza de Patrícia só aumenta. Não lembra da gravidez, não lembra de mim nem de ninguém. Nada, absolutamente nada. Nenhum resquício, nenhum fragmento. Uma vida inteira perdida. Olha-me como a um estranho.

Mostro fotos, tento animá-la com nossa história de amor. Ela disfarça, mas os olhos, os olhos minha pequena, não enganam. Sinto a sua tristeza e, ao mesmo tempo, a sua indiferença. Nos tornamos uma família sem identidade. E é assim que você vai nos encontrar.    

Minha filha, essa é a única carta. Me perdoe.”

Isabela dobra delicadamente a carta envelhecida pelo tempo e a coloca dentro de um envelope junto com a foto dos pais. As mãos enrugadas tremem ao tocar seu rosto marcado, não pela ação do tempo, mas sim pelo aparelho cirúrgico que lhe tirou a identidade.    


 

Um comentário:

  1. Que triste.. esse é o tempo sobre as nossas ações? corrosivas?
    triste...

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