quarta-feira, 25 de abril de 2012

Lá fora...

Tudo acontece rapidamente. Num piscar de olhos ela se transporta para o espaço privado, onde tudo o que precisa fazer é não fazer nada. Fechada no seu próprio interior observa a vida transcorrendo lá fora. Não quer sair, precisa ficar ali, quietinha como o caracol na concha.

O que sente? Alegria, êxtase, delírio, compaixão. É feliz assim. Não precisa de água ou comida. Tem a capacidade de viver meses, anos, décadas, em lugares tórridos ou gelados, sob o sol e a chuva. Apenas um fato pode tirá-la daquele sossego, a vida lá fora. O ponto de referência é uma fissura na parede, junto ao rodapé. Fica horas naquele lugar observando o outro lado, um espaço tão desafiador quanto sedutor.

Possui um GPS natural fazendo com que nunca se perca. A única perda, nesse caso, é da sensatez. O que diria Samsa diante de tanta precaução? Ela sabe o que a espera. Só não consegue prever o dia em que será esmagada como todas as outras baratas da casa.


terça-feira, 10 de abril de 2012

A mala vermelha

O tempo é fragmentado. A vida dividida em minúsculas partes agrupadas como um quebra-cabeça. Depois de montado, peça por peça, esse quebra-cabeça revela a imagem construída ao longo dos anos. A minha vida girou em torno de uma família pequena, erguida com muito amor. Viúva cedo demais, criei, eduquei e amei demais você. Agora o que eu mais temia estava para acontecer.

Não há muito para levar. Na mala roupas, livros, fotos, discos, lembranças. Na casa, cada canto uma memória, organizada como em arquivos. Do sofá de couro marrom, gasto nos braços, até a estante de livros, vi os seus primeiros passos. Sentado na cama sobre a colcha azul a primeira palavra – papato – lembra o meu hábito de calçar sapatos fechados naquele verão chuvoso. Na parede branca da sala, quase na porta da rua, registrei a foto do seu primeiro dia de aula na 1ª série. Foram anos de boas memórias, só nós dois, mãe e filho. Ainda lembro das leituras antes de dormir – contos de fadas com finais felizes; o cd do Legião Urbana que lhe dei aos 9 anos; as conversas sobre meninas e as dúvidas sobre sexo; as nossas brigas e os abraços logo depois; as noites em claro esperando você chegar; a faculdade e agora a mala pronta.

O tempo se dilui, escorre como as minhas lágrimas ao ver esse objeto tão simples e amedrontador – a mala vermelha. Ficava ali, em cima do guarda-roupas, me observando sempre que uma nova crise me abatia. Da cama, olhava para cima e só conseguia ver uma pequena parte sempre cheia de pó. Na alça desenhos se formavam em fios quase transparentes. Desenhos que de tempos em tempos mudavam de acordo com a necessidade de sua criadora. Agora o pó e as teias de aranha foram limpos. A imagem do meu quebra-cabeça estava ali, mais uma vez me olhando, agora cheia, pesada.

Estou indo para o lugar que você escolheu, aquele aonde irão cuidar de mim. No bolso interno do meu casaco, bem junto ao coração, levo o mapa da nossa casa. Assim, quando chegar a hora, poderei encontrar o caminho de volta para morrer nos seus braços.