sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O Pressentimento


Naquele dia Maria acordou com um pressentimento: "algo bom vai acontecer". Até hoje sempre fora uma pessimista de carteirinha. Não acreditava no amor, nas pessoas, muito menos na bondade humana. Via tudo pelo lado negativo. Uma nuvem preta pairava sobre sua cabeça.

Mas hoje pela manhã sentiu-se como nunca antes. Feliz. Vestia sempre roupas escuras e sombrias. Hoje não, colocou algo leve e claro. O dia estava propício para uma caminhada. Ouviu o canto dos pássaros onde antes só ouvia ruídos e buzinas. Respirou fundo.

Parou na esquina mais movimentada do bairro. O sinal ainda estava aberto para os carros, lembrou do bom pressentimento e atravessou a rua de olhos fechados.

Freada de carros, barulho de corpo caindo no chão... era o pressentimento.


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A Carta

"A grama do parque dava a impressão de um tapete vermelho enfeitado com folhas de outono. Ao longe ela parecia uma miragem. Nua. Quando veio em minha direção, não estremeci. O corpo intacto, nenhuma marca. O rosto coberto de sangue. O olhar vazio era como uma hipnose que a protegia da realidade. Senti suas mãos trêmulas pousando sobre as minhas. Não sabia quem era, seu rosto estava desfigurado. Mas aquele olhar, ah minha querida filha, aquele olhar me lembrava alguém. Foi então que a reconheci - minha doce e amada esposa – sua mãe.        

Isso foi há 4 meses. Ainda não sabemos o que aconteceu. Mas tenho certeza, quando você nascer já teremos a resposta. Depois de dois meses no hospital estamos finalmente de volta ao lar. Sem rosto e também sem memória, a tristeza de Patrícia só aumenta. Não lembra da gravidez, não lembra de mim nem de ninguém. Nada, absolutamente nada. Nenhum resquício, nenhum fragmento. Uma vida inteira perdida. Olha-me como a um estranho.

Mostro fotos, tento animá-la com nossa história de amor. Ela disfarça, mas os olhos, os olhos minha pequena, não enganam. Sinto a sua tristeza e, ao mesmo tempo, a sua indiferença. Nos tornamos uma família sem identidade. E é assim que você vai nos encontrar.    

Minha filha, essa é a única carta. Me perdoe.”

Isabela dobra delicadamente a carta envelhecida pelo tempo e a coloca dentro de um envelope junto com a foto dos pais. As mãos enrugadas tremem ao tocar seu rosto marcado, não pela ação do tempo, mas sim pelo aparelho cirúrgico que lhe tirou a identidade.    


 

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Porta-retratos

Olho pela janela, as crianças voltam da escola. Observo-as por alguns minutos. Procuro ao longe meu filho quando o percebo caminhando com outros meninos. Seu sorriso revela a inocência e a alegria da infância. Nossos olhares se cruzam, meu coração dispara de alegria. Ele está aqui em frente.

Corro e, já na porta, coloco a mão no bolso do casaco e encontro meu pequeno porta-retratos de prata. Ali estão as fotos que me acompanham nos últimos anos. Três sorrisos doces, três olhares brilhantes. Tinha planejado trocá-las a cada ano de vida do meu único filho.

Abro a porta e de olhos fechados me deixo levar pelo momento. Agarrada ao porta-retratos retomo a consciência. Ele não virá, eu sei. O sorriso puro de seus oito anos ficará emoldurado para sempre.


quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Tarde da Noite

Tarde da noite, levanta. Dois copos d’água. Volta para a cama, vira de um lado, para o outro. Cochila. Levanta outra vez. De costas para a cama sente a brisa passar por entre as cortinas. Vira e contempla seu corpo ainda quente na cama.